por Rafael Dias
Cenote de Xkeken, Yucatán, México. Fonte: National Geographic
A água é, evidentemente, fundamental à vida humana. Sua importância excede as dimensões do consumo humano e do uso doméstico: a água é usada em atividades tão diversas quanto a agricultura (para irrigação), a pecuária (para consumo animal), a indústria e os serviços. É, portanto, fundamental não apenas à dimensão biológica da vida humana, mas também à social. A abundância ou escassez de água, por exemplo, pode ser um fator determinante dos hábitos de consumo de uma determinada comunidade.
São bastante conhecidos os problemas decorrentes da escassez de água, de sua inadequação para o consumo e uso doméstico e da precariedade dos sistemas de saneamento, tanto no meio urbano quanto no rural.
Uma taxonomia bastante útil para os problemas dessa natureza é aquela proposta por Osorio & Espinosa (2008). Para os autores, os problemas relacionados à água nos países subdesenvolvidos podem ser agrupados em quatro categorias:
- Cobertura: água e esgoto não são acessíveis à maior parte da população;
- Quantidade: os recursos hídricos insuficientes;
- Continuidade: o acesso à água está condicionado a uma sazonalidade;
- Qualidade: a água nem sempre é apta ao consumo humano.
A diversidade dos problemas associados à questão da água tem sido respondida no âmbito da tecnologia apropriada e da tecnologia social por uma miríade de soluções sociotécnicas. Sobejam exemplos de experiências bem e mal sucedidas que têm sido implementadas nos países subdesenvolvidos ao longo das últimas décadas.
A literatura sobre tecnologias alternativas apresenta uma série de evidências que destacam a importância da participação ativa das comunidades (“usuários” ou “beneficiários” também são termos comumente utilizados) na construção de soluções para seus problemas como algo que pode aumentar as possibilidades de sucesso da experiência (Hildebrand, 1977; Henry, 1978; Darrow & Saxenian, 1986). Estes, na maior parte dos casos, não são propriamente de caráter técnico, mas organizacional e administrativo, conforme aponta Hofkes (1983).
A despeito do avanço que essa percepção representa, a literatura mainstream sobre tecnologia – e quase que a totalidade das políticas públicas do âmbito da ciência e tecnologia – ainda preserva a noção de que a produção de tecnologias, mesmo quando orientada para a promoção da inclusão e do desenvolvimento social, compete a cientistas e engenheiros. Segundo essa perspectiva, as comunidades, os trabalhadores, as cooperativas, os movimentos sociais, as ONG e uma série de outros atores não teriam nada a acrescentar ao processo de produção de conhecimentos e tecnologias para o desenvolvimento social. Nada mais falso, como mostram as experiências em tecnologia apropriada e, mais recentemente, em tecnologia social.
Desde os anos 1970 há um movimento de crescente incorporação das comunidades no tratamento dos problemas que a tecnologia não podia resolver. A partir dos anos 1980 esses canais se fortaleceram, em muitos casos convertendo-se em mecanismos que garantiram a efetiva incorporação das comunidades no processo decisório e no planejamento de ações. Contudo, é preciso admitir que as experiências nesse sentido ainda são pontuais.
Conforme apontam Osorio & Espinosa (2008), é preciso superar a ideia de que as comunidades só podem desempenhar o papel de mão-de-obra barata. Elas precisam ser entendidas como atores indispensáveis na tomada de decisões, no planejamento, no monitoramento das ações, no desenvolvimento de tecnologias e na produção de conhecimentos.
Outro elemento explorado pela literatura acerca das tecnologias alternativas que estaria na base do sucesso das experiências remete à importância de ações complementares aos programas de estímulo à produção de tecnologias para o desenvolvimento social (Hofkes, 1983). Exemplos de ações dessa natureza envolvem atividades de capacitação (das comunidades, dos pesquisadores, dos gestores de programas) e de conscientização (educação ambiental, higiene pessoal), além de políticas correlatas (para a Economia Solidária, para o cooperativismo, para a produção de conhecimentos para a inclusão social).
O envolvimento governamental também é geralmente entendido como um fator decisivo para o sucesso de ações dessa natureza. Embora um dos objetivos das ações ligadas à tecnologia apropriada (e, atualmente, à tecnologia social) seja promover o empoderamento das comunidades e empreendimentos solidários, experiências mostram que a atuação competente dos governos pode ser um fator que potencializa, e não limita, a participação ativa dos atores no processo decisório e a autogestão.
Um ponto fundamental é aquele que envolve a viabilidade financeira dos programas e projetos desenvolvidos no âmbito da tecnologia apropriada e da tecnologia social, sobretudo quando estes envolvem problemas associados à questão da água e do saneamento, que frequentemente exigem uma escala considerável (ainda que significativamente menor que aquela requerida pelos métodos convencionais). A criação de instrumentos de financiamento estatal específicos para o fomento dessas ações ao longo de toda sua duração (e não apenas em suas fases iniciais) é reconhecidamente um fator importante para sua sobrevivência e seu sucesso (Hofkes, 1983).
A respeito dessa questão, é particularmente elucidativa a experiência do Projeto Piloto de Orangi, implementado no Paquistão no início da década de 1980, e de cujos resultados foram extraídas recomendações que passaram a ser adotadas em outros programas semelhantes (Zaidi, 2001). O Projeto tinha como objetivo promover a construção de uma rede de esgoto na cidade de Orangi através dos esforços da própria comunidade a que deveria favorecer. Nesse sentido, foi bastante exitoso: após duas décadas, a comunidade ainda se mantém à frente do Projeto, que atualmente beneficia mais de 92 mil famílias (cerca de 90% da população total de Orangi). Isso não significou, contudo, um rompimento com o governo e com as agências públicas. Pelo contrário, o estabelecimento de canais perenes de comunicação dos problemas locais para as agências governamentais é considerado um dos fatores que possibilitaram o sucesso do Projeto.
Os problemas associados à escassez e à contaminação da água são complexos. Mas as formas encontradas por comunidades do mundo inteiro para atacá-los têm se mostrado bastante eficazes. Ao longo das próximas publicações sobre a água, apresentaremos no Blog algumas dessas iniciativas. O texto de novembro irá discutir em maior profundidade a experiência de Orangi, bem como a criação de um tipo particular de bomba d’água no Zimbábue.
Leia mais sobre o tema:
DARROW, K. & SAXENIAN, M. (1986) Appropriate technology sourcebook: a guide to practical books for village and small community technology. Stanford: Volunteers in Asia.
GARFI, M. & ANTONIO, F. (2007) “Tecnologías apropiadas para desinfección de agua”. Cuadernos internacionales de tecnología para el desarrollo humano.
GNADLINGER, J. (2001a) “Captação de água de chuva para o desenvolvimento sustentável do semi-árido brasileiro: uma abordagem focalizando o povo”. 3° Simpósio Brasileiro de Captação de Água de Chuva no Semi-Árido. Petrolina, PE.
GNADLINGER, J. (2001b) “Captação de água de chuva para uso doméstico e produção de alimentos: a experiência do Estado de Gansu no norte da China”. 3° Simpósio Brasileiro de Captação de Água de Chuva no Semi-Árido. Petrolina, PE.
GUIMARÃES FILHO, C. & LOPES, P. R. C. (2002) Elementos a serem considerados na Formulação de um Programa de Convivência com a Seca para o Semi-Árido Brasileiro. EMBRAPA Semi-Árido: Petrolina, PE.
HILDEBRAND, P. E. (1977) Generating small farm technology: an integrated, multidisciplinary system. 12th West Indian Agricultural Economics Conference of the Caribbean Agro-Economic Society. Antigua, Antigua e Barbuda.
HENRY, D. (1978) “Designing for development: what is appropriate technology for rural water supply and sanitation?”. Water Supply & Management¸ vol. 2, n° 2, pp. 365-372.
ZAIDI, A. (2001) “From the lane to the city: the impact of the Orangi Pilot Project’s Low Cost Sanitation Model”. Londres: WaterAid.
São bastante conhecidos os problemas decorrentes da escassez de água, de sua inadequação para o consumo e uso doméstico e da precariedade dos sistemas de saneamento, tanto no meio urbano quanto no rural.
Uma taxonomia bastante útil para os problemas dessa natureza é aquela proposta por Osorio & Espinosa (2008). Para os autores, os problemas relacionados à água nos países subdesenvolvidos podem ser agrupados em quatro categorias:
- Cobertura: água e esgoto não são acessíveis à maior parte da população;
- Quantidade: os recursos hídricos insuficientes;
- Continuidade: o acesso à água está condicionado a uma sazonalidade;
- Qualidade: a água nem sempre é apta ao consumo humano.
A diversidade dos problemas associados à questão da água tem sido respondida no âmbito da tecnologia apropriada e da tecnologia social por uma miríade de soluções sociotécnicas. Sobejam exemplos de experiências bem e mal sucedidas que têm sido implementadas nos países subdesenvolvidos ao longo das últimas décadas.
A literatura sobre tecnologias alternativas apresenta uma série de evidências que destacam a importância da participação ativa das comunidades (“usuários” ou “beneficiários” também são termos comumente utilizados) na construção de soluções para seus problemas como algo que pode aumentar as possibilidades de sucesso da experiência (Hildebrand, 1977; Henry, 1978; Darrow & Saxenian, 1986). Estes, na maior parte dos casos, não são propriamente de caráter técnico, mas organizacional e administrativo, conforme aponta Hofkes (1983).
A despeito do avanço que essa percepção representa, a literatura mainstream sobre tecnologia – e quase que a totalidade das políticas públicas do âmbito da ciência e tecnologia – ainda preserva a noção de que a produção de tecnologias, mesmo quando orientada para a promoção da inclusão e do desenvolvimento social, compete a cientistas e engenheiros. Segundo essa perspectiva, as comunidades, os trabalhadores, as cooperativas, os movimentos sociais, as ONG e uma série de outros atores não teriam nada a acrescentar ao processo de produção de conhecimentos e tecnologias para o desenvolvimento social. Nada mais falso, como mostram as experiências em tecnologia apropriada e, mais recentemente, em tecnologia social.
Desde os anos 1970 há um movimento de crescente incorporação das comunidades no tratamento dos problemas que a tecnologia não podia resolver. A partir dos anos 1980 esses canais se fortaleceram, em muitos casos convertendo-se em mecanismos que garantiram a efetiva incorporação das comunidades no processo decisório e no planejamento de ações. Contudo, é preciso admitir que as experiências nesse sentido ainda são pontuais.
Conforme apontam Osorio & Espinosa (2008), é preciso superar a ideia de que as comunidades só podem desempenhar o papel de mão-de-obra barata. Elas precisam ser entendidas como atores indispensáveis na tomada de decisões, no planejamento, no monitoramento das ações, no desenvolvimento de tecnologias e na produção de conhecimentos.
Outro elemento explorado pela literatura acerca das tecnologias alternativas que estaria na base do sucesso das experiências remete à importância de ações complementares aos programas de estímulo à produção de tecnologias para o desenvolvimento social (Hofkes, 1983). Exemplos de ações dessa natureza envolvem atividades de capacitação (das comunidades, dos pesquisadores, dos gestores de programas) e de conscientização (educação ambiental, higiene pessoal), além de políticas correlatas (para a Economia Solidária, para o cooperativismo, para a produção de conhecimentos para a inclusão social).
O envolvimento governamental também é geralmente entendido como um fator decisivo para o sucesso de ações dessa natureza. Embora um dos objetivos das ações ligadas à tecnologia apropriada (e, atualmente, à tecnologia social) seja promover o empoderamento das comunidades e empreendimentos solidários, experiências mostram que a atuação competente dos governos pode ser um fator que potencializa, e não limita, a participação ativa dos atores no processo decisório e a autogestão.
Um ponto fundamental é aquele que envolve a viabilidade financeira dos programas e projetos desenvolvidos no âmbito da tecnologia apropriada e da tecnologia social, sobretudo quando estes envolvem problemas associados à questão da água e do saneamento, que frequentemente exigem uma escala considerável (ainda que significativamente menor que aquela requerida pelos métodos convencionais). A criação de instrumentos de financiamento estatal específicos para o fomento dessas ações ao longo de toda sua duração (e não apenas em suas fases iniciais) é reconhecidamente um fator importante para sua sobrevivência e seu sucesso (Hofkes, 1983).
A respeito dessa questão, é particularmente elucidativa a experiência do Projeto Piloto de Orangi, implementado no Paquistão no início da década de 1980, e de cujos resultados foram extraídas recomendações que passaram a ser adotadas em outros programas semelhantes (Zaidi, 2001). O Projeto tinha como objetivo promover a construção de uma rede de esgoto na cidade de Orangi através dos esforços da própria comunidade a que deveria favorecer. Nesse sentido, foi bastante exitoso: após duas décadas, a comunidade ainda se mantém à frente do Projeto, que atualmente beneficia mais de 92 mil famílias (cerca de 90% da população total de Orangi). Isso não significou, contudo, um rompimento com o governo e com as agências públicas. Pelo contrário, o estabelecimento de canais perenes de comunicação dos problemas locais para as agências governamentais é considerado um dos fatores que possibilitaram o sucesso do Projeto.
Os problemas associados à escassez e à contaminação da água são complexos. Mas as formas encontradas por comunidades do mundo inteiro para atacá-los têm se mostrado bastante eficazes. Ao longo das próximas publicações sobre a água, apresentaremos no Blog algumas dessas iniciativas. O texto de novembro irá discutir em maior profundidade a experiência de Orangi, bem como a criação de um tipo particular de bomba d’água no Zimbábue.
Leia mais sobre o tema:
DARROW, K. & SAXENIAN, M. (1986) Appropriate technology sourcebook: a guide to practical books for village and small community technology. Stanford: Volunteers in Asia.
GARFI, M. & ANTONIO, F. (2007) “Tecnologías apropiadas para desinfección de agua”. Cuadernos internacionales de tecnología para el desarrollo humano.
GNADLINGER, J. (2001a) “Captação de água de chuva para o desenvolvimento sustentável do semi-árido brasileiro: uma abordagem focalizando o povo”. 3° Simpósio Brasileiro de Captação de Água de Chuva no Semi-Árido. Petrolina, PE.
GNADLINGER, J. (2001b) “Captação de água de chuva para uso doméstico e produção de alimentos: a experiência do Estado de Gansu no norte da China”. 3° Simpósio Brasileiro de Captação de Água de Chuva no Semi-Árido. Petrolina, PE.
GUIMARÃES FILHO, C. & LOPES, P. R. C. (2002) Elementos a serem considerados na Formulação de um Programa de Convivência com a Seca para o Semi-Árido Brasileiro. EMBRAPA Semi-Árido: Petrolina, PE.
HILDEBRAND, P. E. (1977) Generating small farm technology: an integrated, multidisciplinary system. 12th West Indian Agricultural Economics Conference of the Caribbean Agro-Economic Society. Antigua, Antigua e Barbuda.
HENRY, D. (1978) “Designing for development: what is appropriate technology for rural water supply and sanitation?”. Water Supply & Management¸ vol. 2, n° 2, pp. 365-372.
ZAIDI, A. (2001) “From the lane to the city: the impact of the Orangi Pilot Project’s Low Cost Sanitation Model”. Londres: WaterAid.
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